O silêncio da Justiça e o império dos cartórios sem lei

Por Fábio Belém

A omissão das autoridades na fiscalização dos cartórios do Ceará vem escancarando uma realidade preocupante: a da falta de controle e do distanciamento de quem deveria garantir o funcionamento regular do sistema de registros públicos.

O descaso, segundo fontes ouvidas pela reportagem — que pediram anonimato por medo de represálias —, parte desde a direção dos fóruns até a própria corregedoria, que parece fechar os olhos para irregularidades gritantes.

A diretora de um importante fórum da capital, que há mais de dois anos ocupa o cargo, tem sido citada como símbolo dessa inércia. Documentos e testemunhos revelam que ela tem se recusado a receber jornalistas e cidadãos que tentam denunciar irregularidades, inclusive após diversas tentativas de contato formal. “No papel é tudo bonito, mas na prática é uma bagunça”, afirma uma das fontes, servidora há mais de uma década no sistema.

As denúncias se acumulam. Há titulares de cartórios que sequer comparecem ao local de trabalho. Segundo apurações, alguns não aparecem nem um dia por semana, deixando o serviço nas mãos de prepostos sem qualificação legal.
“O titular é um nome de fachada. A serventia funciona no piloto automático”, descreve outra fonte, que prefere não ser identificada por receio de represálias administrativas.

Mais grave ainda: a reportagem identificou que mais de 30 cartórios de municípios do interior mantêm filiais disfarçadas em Fortaleza, oferecendo todo tipo de serviço de registro, sem autorização oficial da Corregedoria. A prática, que é ilegal, vem sendo tolerada há anos, favorecendo esquemas de fraude, lavagem de dinheiro e desvio de competência jurisdicional.

Um caso recente expôs o tamanho do problema: um tabelião afastado de suas funções por suspeita de fraude em escrituras públicas continua a ter documentos oriundos de seu cartório sendo aceitos e registrados na capital. A falta de fiscalização e de resposta institucional cria um terreno fértil para o crime e destrói a confiança do cidadão no sistema notarial.

Especialistas ouvidos pela reportagem afirmam que o problema é sistêmico. “Os juízes das comarcas do interior não têm estrutura, preparo ou, muitas vezes, disposição para fiscalizar. A ausência de inspeções sérias cria uma zona de conforto para o erro e para a corrupção”, pontua um advogado que atua há mais de 20 anos na área imobiliária.

Enquanto isso, a população — o verdadeiro patrão, o contribuinte que sustenta o sistema — fica para trás. A falta de transparência, a resistência em atender o público e o tratamento desrespeitoso com quem busca respostas transformam o serviço cartorário em um labirinto de descaso.

“É como se alguns servidores e gestores acreditassem ser semideuses do Olimpo, imunes a críticas e acima da lei”, resume uma das fontes.

A reportagem tentou, por diversas vezes, obter resposta da direção do fórum citado, sem sucesso. Os questionamentos também foram encaminhados à Corregedoria de Justiça, mas até o fechamento desta edição nenhum posicionamento oficial foi enviado.

Fontes ligadas ao próprio sistema judiciário apontam que o problema tem nome e endereço. Há uma percepção generalizada de que a atual diretora do fórum responsável pela supervisão dos cartórios de Fortaleza — já em sua segunda gestão — vem há muito tempo fechando os olhos para as irregularidades que todos conhecem. A falta de ação, segundo servidores e advogados, reflete não apenas omissão administrativa, mas também uma perigosa tolerância institucional.

Enquanto o Tribunal de Justiça mantém o discurso da eficiência e da modernização, na prática a morosidade é a regra: apenas seis unidades de registro operam na capital, levando até sessenta dias para concluir um processo que deveria ser feito em poucos dias. O resultado é desastroso — prejuízos ao cidadão, insegurança jurídica ao investidor e o descrédito de um sistema que, em vez de garantir agilidade e confiança, parece funcionar em benefício da própria inércia.

Nota do repórter:
Enquanto o poder público dorme, a ilegalidade cresce. O Ceará assiste, em silêncio, à transformação dos cartórios em feudos particulares, onde a lei é o que cada um quer que seja. É hora de as instituições acordarem, antes que a segurança jurídica vire apenas uma ilusão impressa em papel timbrado.

Linha do Tempo

Os Bastidores da Crise dos Cartórios no Ceará

2024 – Início das denúncias internas
Serventuários e advogados começam a relatar irregularidades em cartórios do interior do Ceará que atuam, de forma paralela, por meio de escritórios sediados em Fortaleza — prática considerada ilegal pela Corregedoria.

Março de 2025 – Primeiros indícios de fraude
Chegam à imprensa e a órgãos fiscalizadores denúncias sobre possíveis falsificações de assinaturas e registros irregulares envolvendo o 1º Ofício de Notas de Saboeiro, com documentos lavrados sem a presença das partes interessadas.

Julho de 2025 – Reclamações sobre demora nos registros
Investidores e cidadãos passam a relatar prazos de até 60 dias para a conclusão de registros imobiliários em Fortaleza, gerando prejuízos e travando operações econômicas.

28 de outubro de 2025 – Ofício de alerta
O cidadão Elísio Martignano Lima Barbosa protocola um ofício junto ao 2º Ofício de Registro de Imóveis de Fortaleza, pedindo a suspensão de qualquer transferência de imóvel sob suspeita de fraude e o acesso a toda a documentação das transações.

08 de novembro de 2025 – Denúncia formal à Corregedoria
O jornalista e denunciante Raimundo Fábio Belém de Oliveira apresenta representação oficial à Corregedoria-Geral da Justiça do Ceará, apontando fraudes e irregularidades em atos notariais, com envolvimento do 1º Ofício de Notas de Saboeiro e do 2º Ofício de Registro de Imóveis de Fortaleza.

Novembro de 2025 – Silêncio institucional
Apesar das denúncias e da repercussão pública, a diretoria do fórum responsável pelos cartórios permanece inerte, sem adoção de medidas efetivas de fiscalização. A crise de confiança se aprofunda.

Atualidade – Pressão por providências
Com dezenas de cartórios do interior atuando irregularmente na capital e a falta de rigor da Corregedoria e do Tribunal de Justiça, cresce o clamor por uma reforma urgente no sistema extrajudicial cearense — um apelo pela restauração da fé pública e pelo respeito ao cidadão.